quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Ideias Eficientes

Estávamos no quartel quando ele entrou e, como de costume, cumprimentou a todos com seu vozeirão característico. O quartel é um boteco que frequentamos diariamente, eu e mais quatro amigos, e onde ficamos bebericando alguma coisa e conversando banalidades. Futebol, religião e política brasileira. Mulher? Não. Mulher não é banalidade! Mulher é coisa séria e gostosa. Pena que nunca vem sozinha. Vem sempre acompanhada. Traz consigo a mãe, TPM e contas: luz, água, telefone, farmácia, supermercado, colégio das crianças, além de mais uma infinidade. Ao sair leva muita coisas - das que trouxe, apenas a TPM - dentre elas o carro e, algumas vezes, uma baita de uma pensão e deixa falta. Muita falta.
Ele permaneceu em pé.
_ Senta um pouquinho prá gente conversar. Tá com mais de dois meses que você aparece.
_ É verdade. Eu bem que gostaria de sentar e conversar um pouco. O problema é que vou viajar hoje à tarde e preciso comprar pneus novos. Meu carro tá com os pneus carecas. Você sabe onde posso encontrar pneus mais em conta?
Citei dois supermercados que estavam fazendo promoções de pneus.
_ Nem pensar! Pneu de supermercado não presta. Supermercado só vende porcaria. Eu quero pneu de boa qualidade, Michelin, Fate, Yokohama, Remold.
Achei puro esnobismo. Não faz muito tempo, comprava pneu usado em borracharia. Pneu com meia vida. Será que ele sabe que o pneu Remold é remodelado? O que é que eu tenho a ver com isso? Carro novo, pneus novos. Quer dizer, carro novo vírgula. Carro de segunda mão bem conservado. Deixa prá lá.
Ele continuava de pé. Um detalhe curioso é que no quartel nos tratamos sempre no diminutivo independente da estatura de cada um. Pedrinho, Mazinho, Paulinho, Veierinha e etc, exceto ele. Bem que tentamos, mas desistimos. O porte dele não combina com diminutivo.
_ Não vai tomar nenhumazinha, insisti?
_ Só depois que resolver esse abacaxi. Quero ficar despreocupado e não pensar mais em pneus. Quero uma rodagem excelente. Pneus importados!
" Tá fazendo enxame, pensei.Esnobismo mesmo". Se há uma coisa que me deixa fulo da vida é autopromoção. Tive uma idéia e resolvi fazer hora com a cara dele.
_ Posso dar uma sugestão?
_ Claro.
_ Por que você não coloca aquelas rodinhas de trem? O carro se acaba e elas ficam, garanto.
Falei e fiquei esperando o pior: o coice, que veio de imediato.
_ Eu vou colocar é a sua rodinha, disse fazendo um círculo com os dedos polegar e indicador da mão direita.
Como eu já esperava uma resposta semelhante, levei na esportiva e retruquei:
_ Só vai ter preocupações. A minha rodinha já não é tão nova. Passou da garantia e além do mais o aro tá deixando o ar escapar.
Deu meia volta e saiu sem se despedir. Nunca mais apareceu.



o o o o O o o o o



Depois de colocar as compras no carro foi que percebi o problema: a fila enorme de carros
parados. Pedi para minha mulher esperar no carro e fui dar uma olhada. Havia um caminhão de entregas obstruindo a saída do estacionamento. Por quê? Fui adiante. Alguém havia estacionado o carro à esquerda do meio-fio logo na saída do supermercado. " Ah uma jaula", pensei. Resultado, o motorista do furgão não podia ir à frente impedido pelo carro do "animal" e nem podia dar marcha ré devido aos outros carros que havia atrás do seu. E agora, José? Num momento desses nunca há um "azulzinho" por perto que, aliás só sabem aplicar multas, resolver problemas no trânsito, nunca.
As pessoas começaram a ficar aborrecidas e passaram a buzinar. Um ato idiota e inadequado que na realidade não leva à nada. Em pouco tempo o local estava um caos. Um verdadeiro pandemônio. Apesar do barulho irritante das buzinas, ninguém aparecia para resolver o problema.
Voltei ao supermercado e dirigi-me ao sujeito responsável pelo serviço de som.. Expliquei o problema e pedi para ele chamar a atenção do (ou da) motorista inconsequente sobre o seu estacionamento incorreto.
_ Eu já fiz isso várias vezes, ele me disse.
"Será que alguém estacionou o carro ali, naquele local, e foi resolver algum problema em outro lugar?" Tive uma idéia. Pedi o microfone ao sujeito do som e disse:
_ Atenção proprietário do veículo Fiat Palio cinza escuro, placas HVY 7525, dirija-se ao estacionamento. Bateram no seu carro.
Repeti o aviso mais três vezes, devolvi o microfone, saí e retornei ao estacionamento. Não demorou muito, percebi que os carros começaram a se movimentar. O falso alarme surtira efeito rapidamente.
Estava entrando no carro quando vejo aquela mulher enorme, vestida espalhafatosamente, colorida como uma arara - que me perdoem as araras - e gritando tal e qual, gesticulando muito, chamando a atenção de todos e vindo em minha direção. Entendi tudo imediatamente e me preparei. Ficamos frente a frente e antes que ela dissesse mais desaforos ou me agredisse, falei:
_ Precisa desse escândalo todo só porque não bateram no seu carro?
Não esperei resposta. Entrei no carro, dei partida e deixei-a falando sozinha!

domingo, 4 de janeiro de 2009

Padarias e Padeiros

Final de semestre. Estava terminando de corrigir umas provas quando ele entrou. Me cumprimentou e sentou-se.
_ Encerrando tudo?
_É isso aí.
_Que tal uma geladinha sábado? Para comemorar o início das férias.
_ Pode ser.
_ Vamos lá. Eu quero levá-lo num bar novo que conheci. É legal. Boa música. Excelente frequência. Clientela bastante eclética. Você vai gostar, tenho certeza. É bem diferente. É diferente até no nome. Padaria Espiritual.
Parei a correção. Padaria Espiritual? Que nome mais esquisito para um bar, pensei. Fiz mentalmente uma retrospectiva. Padaria Espiritual foi um importante movimento literário e cultural que teve início no final do século XIX - 1892, trinta anos antes da Semana de Arte Moderna - e durou até meados do século XX. Notabilizou-se pelo caráter irreverente e vanguardista dos seus fundadores. Vários artistas e literatos famosos, como Antonio Sales, Rodolfo Teófilo e Papi Júnior foram "padeiros". O movimento foi precursor da Academia Cearense de Letras que foi fundada três anos antes da ABL, sendo, portanto, a primeira Academia de Letras do Brasil.
_ Combinado?
Fiquei curioso e interessado mas tinha que ver com minha esposa se havia algum compromisso para o final de semana.
_ Sábado às 11:00 horas? Você vai gostar, não tenho dúvidas. Lá tem de tudo. Pessoas comuns, boêmios, artistas, poetas, saudosistas, intelectuais, sem falar na mulherada. Tem cada uma! Você precisa ver prá crer.
Meu interesse aumentou.
_ Vou tentar.
_ Não vai se arrepender. Você precisa conhecer o dono. É um sujeito bacana. Muito educado e atencioso, "monsieur Vicent".
Minha curiosidade duplicou. Prometi que faria o possível e continuei meu trabalho. Ele saiu.
Não fui. Não deu certo. A Padaria Espiritual, tanto a vanguardista com seus "padeiros" quanto a boêmia, com o francês incluso, estiveram presentes durante boa parte de minhas férias. Decidi que no segundo semestre aceitaria o convite do meu amigo e mataria minha curiosidade.
Quando as aulas reiniciaram, organizei o calendário das minhas atividades e achei um sábado livre no começo de Setembro. Combinei com meu amigo, nossa visita ao bar Padaria Espiritual para aquela data. Iríamos nós dois, a secretária dele e uma amiga boazuda, minha conhecida. Eu já tivera maus pensamento a seu respeito. Talvez..
No dia marcado eu estava mais ansioso do que goleiro na hora do pênalti. Motivos: a Padaria Espiritual e seu francês e minha acompanhante tipo "raimunda". Que bela padaria, a dela.
Meu amigo teve que passar na sala do Diretor, assim, eu e as garotas, fomos na frente.
Achei o local bem interessante. Era uma construção antiga. Estava precisando de uma pintura geral mas era bastante agradável. Entramos. Havia dois salões. Um pequeno com todas as mesas ocupadas e um outro, enorme, com várias mesas desocupadas. Não vi mulher alguma além das nossas acompanhantes. Mesmo assim o ambiente era gostoso. Ventilado, silencioso - ideal para um bate-papo - e com pouca luminosidade. Escolhemos uma mesa reservada. Sentamos e fomos atendidos por um garçom baixinho, cabeça chata, com cara de papudinho, vestido normalmente e que atendia pelo nome de Vicente. Pedi uma cerveja e fui ao banheiro. Quando voltei o meu amigo já havia chegado e conversava com o garçom que se encontrava sentado à nossa mesa. Achei estranho mas nada disse. Sentei. Eles conversavam sobre uma viagem à Canindé que seria feita no final do ano. Depois de algum tempo entrei na conversa.
_ Canindé a pé?
- Vou todos os anos, disse o garçom e continuou contando a sua peregrina façanha.
Perdi o interesse por Canindé e voltei-me para as garotas. Percebi que a minha suposta acompanhante estava de olho num gringo que pelo fenótipo devia ser americano. " Tudo bem. Não temos nenhum compromisso", pensei com meus botões.
Estávamos no local há mais de uma hora e o francês nada de aparecer. O garçom não largava meu amigo. Eu já não aguentava mais sua romaria. E o francês, cadê? Tive vontade de perguntar, mas meu amigo estava bastante entretido com o garçom, que depois levantou-se e dirigiu-se a mim.
_ Meu querido desculpe se ainda não lhe dei a devida atenção. Espere um instantinho só. Eu volto já, já e então a gente conversa. Disse, pediu liçença e saiu.
A ficha caiu! Vicent? Vicente! É isso! O filho da puta do meu amigo me pregara uma peça! Nada de francês elegante, educado, charmoso, refinado como me fizera acreditar todo esse tempo.
" Monsieur Vicent" era na verdade um típico cearense de cabeça chata, devoto de São Francisco do Canindé e ainda por cima pinguço! Uma decepção. Não demorou muito e minha "padaria" mudou-se para a mesa do "padeiro" americano. Outra decepção.
Um regional tocando chorinhos divinamente bem,salvou a situação durante o resto da tarde.
Cheguei em casa por volta das 17:00 horas de "tanque cheio". Minha esposa olhou-me com aquele seu olhar"tinta e três", fez uma avaliação do meu estado etílico e disse:
_ Querido, não tem pão pro jantar. Você quer ir na padaria?
_ Vá você. Aos sábados eu detesto padarias!

sábado, 3 de janeiro de 2009

Haja Patriotismo

Sempre gostei de pregar peças nos outros, óbvio. Exceto em meus amigos mais amigos para não "arranhar" o bom relacionamento e em meus superiores, por uma questão de hierarquia, ou quem sabe, talvez o mais provável, com medo de perder o emprego.
Num colégio onde lecionei durante quase dezessete anos - precisamente dezesseis anos e quatro meses - às quartas-feiras, antes do início das aulas, todas as pessoas que se encontravam na escola, do mais simples funcionário ao diretor, além de eventuais pais e demais pessoas estranhas ou não ao ambiente, perfilavam-se no pátio para o hasteamento da Bandeira Brasileira. Como era de praxe, antes cantava-se o Hino Nacional sob o comando da batuta de uma maestrina.
Nós, do segundo grau ,formávamos um grupo de, normalmente, dez professores destacados dos demais, sendo que um deles, mais que meu amigo era também meu superior.
Eu toco violão, além de ser professor. Não sou músico mas tenho uma boa bagagem musical e um ouvido muito exigente. Por isso, sinto-me desconfortável diante de algumas situações: qualquer instrumento desafinado, pessoas que cantam fora do rítmo e/ou atravessam o tempo e pessoas que não conseguem cantar no tom certo. O meu amigo e superior enquadra-se no último grupo. Não canta no tom nem com reza braba ou mandinga de pai de santo.
A cada quarta-feira repetia-se a mesma cena. Nosso grupo e as demais pessoas perfiladas.
" Ouviram do Ipiranga às márgens plácidas..."
O meu amigo com sua voz de tenor desafinado a ferir nossos tímpanos e achando-se o maioral, um verdadeiro Pavaroti, era um tremendo desastre musical. Um atentado sonoro aos nossos ouvidos e aos das pessoas mais próximas. Some-se a isso os erros à letra do Hino Nacional.
Relutei, avaliei prós e contras, medi as possíveis consequências e, finalmente resolvi pregar-lhe uma peça.Combinei com o grupo, que se sentia tão incomodado quanto eu, e preparamos tudo direitinho.
Na quarta-feira seguinte lá estávamos nós. Posicionamo-nos de tal forma a deixá-lo, propositadamente, no centro. Começamos. " Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...". Incentivado pela turma ele começou a cantar bastante forte. Diria, até forte demais. Iniciamos a segunda parte. " Deitado eternamente em...". Próximo ao final, e sob meu comando, o grupo silenciou totalmente e ele continuou cantando muito alto e desafinado." Nem temes quem te adora à própria morte...". As pessoas que se encontravam nas proximidades ouviram perfeitamente que meu amigo e superior além de cometer um erro crasso de concordância na letra do Hino Nacional, era mais desafinado do que um peido dentro d'água.
Se a brincadeira teve alguma influência no que aconteceu posteriormente, eu não sei. Mas o certo é que, logo após esse incidente aboliram completamente essa manifestação de patriotismo!

Mossoró, 31 de Dezembro de 2008.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A Maja Desnuda

Sempre que vejo nus de grandes mestres como Rubens, Tintoretto e Goya reporto-me ao tempo da minha pré-adolescência. Não que eu tivesse, àquela época, na minha parca idade e morador de um pequeno vilarejo interiorano, qualquer noção sobre os trabalhos de nenhum desses fabulosos artistas. Isso só aconteceu depois. Alguns anos depois quando frequentava o Curso Ginasial - atual Ensino Fundamental. Foi nesse período que tive a oportunidade de ver pela primeira vez, na biblioteca do colégio, algumas das suas belíssimas telas.
A Maja Desnuda de Goya encheu-me a vista e tocou meu íntimo com sua sensualidade e chamou minha atenção pela semelhança fenotípica com uma madrinha que eu tive. Batismo? Crisma? Não. Madrinha de fogueira.
Noite de São João e, recordo-me bem, lá estávamos nós, os três ao redor da fogueira naquela magia gostosa comum às coisas interioranas. Primeiro nós dois, os homens.
Ele: São João disse,
Eu: São Pedro confirmou.
Ele: Que você há de ser meu afilhado,
Eu: E o senhor meu padrinho,
Nós: Que Jesus mandou.
Depois, o momento de glória, a vez dela. Repetimos o ritual. Pronto. Após aquele ato simples e de acordo com as tradições tornamo-nos, sem qualquer aparato legal, padrinhos e afilhado.
A partir daquele dia, a nossa tríplice amizade que, havia algum tempo, já era bastante sólida. aumentou, tornou-se mais íntima, mais gostosa. Passei a frequentar a casa deles, cada vez com maior frequência, mais amíude, por três motivos: prestava-lhes, por puro prazer, pequenos trabalhos domésticos; tinha acesso irrestrito à biblioteca (sempre gostei muito de ler); e, por ela.
Ela foi minha segunda paixão. A primeira foi a professora primária. Minha madrinha era uma mulher linda, na minha concepção de menino-homem. Tinha a pele clara, cabelos escuros, um rosto belíssimo - de uma clássica e rara beleza - e um corpo carnudo, sem exageros ou excessos. Um corpo, digamos assim, fornido. Me perdoem as "top models", com seus belos(?) corpos esqueléticos, mas sou, desde criança, do time das Sônias Braga.
Minhas visitas à casa dos meus padrinhos ocorria quase que diariamente. Minhas leituras eram feitas, estrategicamente, deitado dorsalmente no chão. A posição, além de bastante confortável, me proporcionava uma belíssima visão das pernas da minha madrinha que vinha sempre me trazer merenda quando eu estava lendo. Que visão maravilhosa, divina, prazerosa, pecaminosa, até. Eu ali, deitado no chão e ela de pé na minha frente com as pernas - acho que de propósito - ligeiramente abertas. Durante uma das minhas sessões de leitura, no inverno, ouvi quando ela e uma amiga combinaram tomar banho de rio no dia seguinte. O local foi escolhido e citado por ela à porta da biblioteca onde eu me encontrava. Conhecia perfeitamente a árvore e o local citados, uma oiticica na curva do rio.
No outro dia, cedinho, lá estava eu empoleirado na oiticica. Não esperei muito. Uma meia hora, no máximo. Elas chegaram e começaram a despir-se. Apesar da outra também ser uma mulher muito bonita, não me despertava o menor interesse. Só tinha olhos para ela. A cada peça de roupa tirada, aumentavam minha ansiedade e excitação. Na minha quase imobilidade, para não chamar a atenção, fui vendo surgir lentamente aquele corpo de curvas perfeitas, de uma brancura láctea. Os seios lindos! Médios, rijos, com as aréolas róseas e os bicos empinados como se apontassem para algo à frente. Controlei-me para não atingir a máximo de prazer antes do final do espetáculo que, para meu deleite, ocorria como em câmara lenta. Minha excitação chegou ao clímax quando ela, olhando para cima com um sorriso cúmplice, impudico, insinuante e pecaminoso,tirou a calcinha me permitindo ver a bela negritude daquela relva deltóide. A partir daquele momento tornei-me, e continuo até hoje, um fiel discípulo de Onan!

Mossoró, 30 de Dezembro de 2008.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O Rouxinol, o Jumbo e o Aspersório

Todas as manhãs , com uma pequena diferença de tempo, de dois a três minutos, eles anunciam a hora. O primeiro deles, uma pequena maravilha da natureza e uma das menores aves do mundo, o rouxinol, sempre no mesmo horário, de forma precisa e britanicamente às cinco horas, solta o seu trinado maravilhoso de algumas dezenas de decibéis que me transporta ao tempo de criança. Sinto pena das pessoas que nascem e se criam em grandes centros, principalmente as crianças que nunca tiveram ou não têm a oportunidade e o prazer de ouvir o canto matinal de pássaros como o rouxinol. Como uma ave tão pequena consegue ter um canto tão belo? É indescritível! Um canto ritmado, forte, límpido, ligeiramente agressivo e ao mesmo tempo suave. Ele inicia com um trinado forte, em seguida faz um rápido e lindo solo e encerra como começou, um trino, como fechando um círculo. É isso! Um canto em círculos.
Quando criança, no sítio onde morávamos, eu era sempre acordado por rouxinóis que cantavam
em árvores que havia nos fundos da nossa casa, onde eles construíam seus ninhos. Aos pouco, à seu canto, juntava-se um coro de outras aves como o bem-ti-vi e o sabiá branco. Que bela sinfonia. Sem pardais. Esses são bagunceiros. Cantam também maravilhosamente, mas de forma não cadenciada ou sequenciada. Um pouco mais tarde, já com o sol bem alto iam surgindo os músicos retardatários: o corrupião, o galo da campina, o pintassilgo, o golinha e outros mais. Que beleza e quanta saudade.
O outro, o segundo, normalmente atrasado, anuncia a hora com o seu ensurdecedor barulho de centenas, ou talvez milhares, de decibéis. Trata-se de uma maravilha da capacidade inventiva do homem e imprescindível às necessidades da vida moderna, uma gigantesca aeronave tipo jumbo. Quando o anúncio se faz simultaneamente, apenas estes, os grandões, são ouvidos.
Antes eram somente os rouxinóis. Os invasores surgiram após a construção do novo aeroporto internacional Pinto Martins e, consequentemente, com as mudanças das rotas aéreas de chegada e saída dos voos. De início houve necessidade de uma adaptação auditiva à nova situação a fim de possibilitar ao indivíduo realizar atos comuns ao dia-a-dia como assistir televisão, conversar, telefonar e dormir. Depois nos adaptamos. Como diz o ditado, "nos acostumamos, também, com o que não presta".
Depois de feito o anúncio das horas, de duas formas tão diferentes e sonoramente opostas, levanto-me. É hora de regar as plantas, um dos meus prazeres de aposentado. Ligo a torneira, pego a mangueira e inicio o meu lazer matinal. Minha esposa vive insistindo para eu comprar um aspersório, a fim de evitar movimentos capazes de afetar minha coluna que já não anda muito bem, faz tempo. Até pensei no caso. Desisti. Aguar as plantas é uma atividade saudável, argumentei, e portanto é muito importante para o meu bem estar.
Pensando bem, acho que, na realidade, a aspersório não tem muito a ver com as dores na minha coluna, mas, com certeza, evitaria o barulho(?) provocado pelo jorrar da água da mangueira, acordando-a, quando rego algumas plantas que ficam embaixo de sua janela.
" Durma-se com um barulho desses"! E um jumbo não consegue acordá-la!

Mossoró, 29 de Dezembro de 2008.