sábado, 6 de março de 2010

Cantando no Banheiro

O pesadelo começou uns dois anos depois da separação quando, durante o banho, ele olhou para baixo e só conseguiu ver, além da enorme protuberância arredondada, as cabeças dos dedos dos pés. Oh meu Deus! Cadê o pingolim? Sumira completamente!. Levou a mão à região púbica e, depois de tatear bastante, conseguiu encontrá-lo. Ficou apavorado. Só isso? Tentou vê-lo. Puxou, esticou, nada. A protuberância enorme (leia-se pança) impossibilitava. Encolheu? Será? Fez novas tentativas, nada! O encolhimento do pingolim fora inversamente proporcional ao crescimento da barriga. Depois de refeito, resolveu, naquele exato momento, tomar medidas urgentes para tentar sanar o problema. Medidas drasticamente radicais. Aquilo, a pança, era o resultado do sedentarismo agravado pela aposentadoria e visitas frequentes à geladeira, somados a tendência genética à obesidade.
Saiu do banheiro decidido a mudar seu modo de vida, começando por duas medidas simples: se mexer e fechar a boca para uma porção de alimentos. Não ia procurar profissionais especializados, endocrinologista, nutricionista ou qualquer outro. Não ia frequentar academia nem SPA. Nada disso. Ia resolver tudo na base do "ou vai ou racha".
Começou imediatamente um novo padrão de comportamento: dietas rigorosas e atividades físicas. Entretanto, todo dia na hora do banho era o mesmo sofrimento, quando olhava para baixo: só as cabeças dos dedos. Pensou, várias vezes, em desistir. "Tenha paciência, seja persistente, essa sua forma anatômica é resultado de anos e mais anos de sedentarismo. Como pode querer que o resultado seja imediato? É impossível. Persista. Talvez demore anos para voltar ao normal" dizia-lhe sempre sua consciência quando ele fraquejava. Anos? "Sim, por que não?" Nesses momentos tinha vontade de chorar. Ah que vontade de ver o pingolim! Um dia quando trocava a roupa com a porta do guardarroupa aberta, olhou-se no espelho. A visão que teve foi impressionante: a pança enorme e, logo abaixo, uma região triangular escura, com três bolinhas de carne, tal qual almôndegas. Ficou horrorizado!Sua mente estava com a razão, tinha que ser persistente e paciente. Resolveu continuar tocando o barco pra frente.
Depois de cinco meses de caminhadas matinais e vespertinas diariamente e de uma hora de natação três vezes por semana, associadas a uma dieta básica de frutas, legumes, cereais, diversos tipos de grãos (inclusive alpiste) e uma variedade acentuada de vegetais folhosos - sua refeição, no almoço, parecia mais comida de camaleão do que de um ser humano - começou avisualizar, durante o banho, a metade dos pés e - que felicidade - a cabeça do pingolim! Notou, também, que estava menos redondo, uma prova concludente que estava no caminho certo. Ganhou novo ânimo! Saiu do banheiro, o que surpreendeu a faxineira, cantando "apareceu a Margarida".
Passou a frequentar somente restaurantes naturais. Churrascaria, pizzaria, choperia, sorveteria e afins, nunca mais! Tudo coisa do passado.
É verdade que as vezes tinha pesadelos estranhos: morrendo sufocado com um pedaço de pizza; afogado num barril de chopp; preso numa câmara frigorífica cheia de carcaças de animais; vomitando sangue depois de comer um pudim envenenado, isso para citar apenas alguns deles.
Quando um amigo lhe convidava para algum evento festivo do tipo "comes e bebes", arranjava sempre uma desculpa para não ir, mas ficava a pensar na variedade de petiscos e drinks: picanha, linguiça, costeleta suína, feijoada, torresmo, chopp, pinga, caipirinha, whisky. Tentações e mais tentações. Pai, afasta de mim esse cara!
_ Obrigado, já tenho compromisso, dizia sempre.
Estava passando por um período muito difícil. Levava uma vida monótona, meio isolado de tudo, quase sem prazeres, mas resoluto quanto à atitude tomada. Alegria mesmo só na hora do banho. Como a pança diminuíra, já avistava os pés, não totalmente, e boa parte do pingolim. Começou a cantar no banheiro. As preocupações sumiram, mas a dieta e as atividades físicas continuaram.
Quase um ano depois do início do "tratamento de choque", durante o banho, enquanto se ensaboava, não sentiu a protuberância abdominal. Olhou para baixo e lá estavam eles completos: os dois pés e o pingolim! Que visão maravilhosa! Lá estava ele, o novo velho pingolim! Parecia até que crescera. Não era nenhum "gigante pela própria natureza" mas era uma beleza. Começou a cantar alto como se quisesse anunciar a todos sua satisfação pelo achado.
Um pouco mais tarde, quando sentou-se à mesa para o desjejum, a faxineira perguntou:
_ O que foi que houve seu Dudu? Por que essa alegria toda?
_ Ele voltou! Graças a Deus, ele voltou!
_Quem seu Dudu?
Não respondeu, mas saiu do apartamento sorrindo para todos, cantando "ele voltou, o boêmio voltou novamente..." e pensando em encarar, finalmente, aquela gostosona do 302.

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